PREFÁCIO
Não há como não elogiar iniciativa dos membros
da Comissão de Direito Securitário da subseção de Jabaquara, da Ordem dos
Advogados do Brasil, seção de São Paulo, de organizar um livro, de criação
coletiva, sobre o contrato de seguro, coordenado pelos advogados César Augusto
Cassoni e Sandro Raymundo.
A
sistemática adotada, em que cada estudo apresentado representa escolha pessoal
de seu autor, criou um painel, o mais variado, de temas sobre o assunto central,
com inegável benefício ao leitor, que, de seu lado, elegerá o que melhor lhe
aprouver.
Aliás,
a própria escolha do tema central – o contrato de seguro – deixando-o em
aberto, ao sabor do desejo de cada um dos autores, é merecedora de elogios, eis
que os organizadores não se intimidaram com sua conhecida dificuldade e nem com
possíveis opiniões contraditórias.
Em
verdade, o contrato de seguro não se cansa de desafiar a inteligência e a
argúcia de todos os que pretendam decifrá-lo. Ouso dizer que, entre o amplo
quadro de contratos regulados pelo atual Código Civil, é o contrato de seguro
um dos mais complexos e com um elevado grau de dificuldade para sua adequada
exegese. Uma das causas da complexidade do contrato de seguro reside no fato de
que a ele não se aplicam o instrumental válido para os demais contratos.
Assim,
p.ex., na questão atinente à boa-fé, o Código Civil trata de forma diferente a
boa-fé nos contratos em geral e a aplicável ao contrato de seguro. Para os
contratos em geral, diz o art. 422, do Código Civil: “Os contratantes são
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé”.
Já no
que se refere ao contrato de seguro, estabelece o art. 765, do mesmo Código: “O
segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do
contrato a mais estrita boa-fé e veracidade tanto a respeito do objeto como das
circunstâncias e declarações a ele concernentes”.
“A
mais estrita boa-fé” significa, segundo os dicionaristas, a mais rigorosa
boa-fé, sem possibilidade de ampliação, obrigando o intérprete a um
comportamento inflexível, diferentemente do que ocorre com a boa-fé usual
exigida para os demais contratos, em que se admite alguma flexibilização.
A
justificativa desse tratamento diferenciado reside para alguns no fato de o
seguro ser essencialmente baseado na boa-fé (cf. Cláudio Bueno de Godoy, in
Código Civil Comentado, coordenado por César Peluso, São Paulo, Manole, 2007,
p. 631). Para outros, no entanto, “A previsão da boa-fé no caso do contrato de
seguro ocorre “não porque o seguro seja um contrato no qual
excepcionalmente a boa-fé é essencial.
Ela é exigida sempre, em cada relação. Todavia, no seguro a relação é
consensual, formada com base em informações das partes, e de trato sucessivo,
tendendo a longa duração com sucessivas reconduções, prorrogações ou
renovações”. (conf. Ernesto Tzirulnik et al., 3. Ed., São Paulo, Editora
Roncarati, 2016, p. 110).
Como é
do conhecimento geral, a livre manifestação de vontade é elemento essencial de
todo negócio jurídico. Deve, portanto, haver consonância entre a vontade
declarada pelo agente do negócio jurídico e seu íntimo querer. Havendo
discordância, a vontade estará viciada e a solução estará prevista no Capítulo
IV, do Código Civil, denominado “Dos defeitos no negócio jurídico”, aí estando
enumerados e regulados seis defeitos: erro, dolo, coação, estado de perigo,
lesão e fraude contra credores, ressaltando alguns autores que a fraude contra
credores não caracteriza, a rigor, um vício do consentimento, mas, sim, um
vício social.
Quando
qualquer dos vícios acima referidos ocorrer no âmbito dos contratos de seguro,
a solução não estará na teoria dos defeitos no negócio jurídico, mas no
disposto no art. 766, e seu parágrafo único, do Código Civil: “Se o o segurado,
por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir
circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa de
prêmio, perderá o direito à garantia , além de ficar obrigado ao prêmio vencido”.
Em
consonância com a exigência da mais estrita boa-fé, percebe-se a existência de
dupla sanção: perda garantia e obrigação de pagar o prêmio vencido.
Parágrafo
único. “Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do
segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo
após o sinistro, a diferença do prêmio”.
De se
notar que enquanto em relação aos vícios do consentimento, a consequência
estatuída no art. 171, II, será a anulabilidade do ato, no que tange ao contrato
de seguro será, para hipótese de omissão ou declaração inexata de má-fé, a
perda da garantia. Inexistindo má-fé do segurado, poderá o segurador resolver o
contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro a diferença do prêmio.
A
exigência da boa-fé, conectada que está com a questão de declarações
contratuais, pre-contratuais e, mesmo após o contrato, constitui fonte
permanente de discussões e análises doutrinárias a que a obra em análise não
ficou em imune. Com efeito, dois textos cuidam especificamente sobre o tema,
com enfoques diferentes, um do advogado Sandro Raymundo, sob o título: “O
comportamento da seguradora na coleta das informações pré-contratuais no seguro
de vida e suas consequências” e outro dos advogados Adilson José Campoy e
Marcio Alexandre Malfatti, denominado “O seguro de pessoa e as recentes súmulas
do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria”
Diante
do acima exposto, poder-se-ia afirmar que o contrato de seguro, nas questões
concernente às declarações de vontade e à boa-fé caracterizaria um sistema
próprio, um micro sistema, apartado, por óbvio, do sistema relativo aos demais
contratos?
No
âmbito mais genérico do contrato de seguros, interessante o trabalho
apresentado por Marcelo Barreto Leal, intitulado “Análise econômica do direito
e os contratos de seguros”, no qual o autor procura “demonstrar a necessidade
de convergência entre as ciências jurídica e econômica” na busca de objetivo
comum, qual seja, a paz social.
Interessante,
também, o texto “Democracia, seguro e recuperação econômica”, de Lúcio Roca
Bragança, em que o autor pesquisa a possibilidade do contrato de seguro ter
alguma participação na garantia “do maior de todos os riscos, que é o
perecimento de nosso regime democrático”.
De se
notar que o extraordinário desenvolvimento científico e tecnológico desta nossa
época geraram, como não poderia deixar de ser, profundas transformações
econômicas e sociais, com notável influência no mundo do seguro. Novos riscos
foram criados, novas formas de contratar foram adotadas e mesmos alguns
institutos jurídicos tradicionais passaram a ser objeto de novas interpretações.
O impacto desse conjunto de circunstâncias sobre o contrato de seguro foi logo
perceptível, tanto nos seguros de dano como nos de pessoa.
Os
riscos que afetam uma grande obra de engenharia, como, p.ex., a construção de
uma plataforma para exploração de petróleo em alto mar é incomparável com os de
um imóvel residencial de pequeno porte, embora ambos pertençam ao seguro de
dano, quando houver a contratação de um seguro contra os inumeráveis riscos que
os afetam. A regulação de sinistro, procedimento
destinado a constatar a existência de evento garantido e a apuração do valor do
dano por ele causado, não poderiam estar sujeitos aos mesmos critérios e
regras. Daí a atual classificação dos seguros de dano em seguros massificados e
de grandes riscos, tema tratado por Laura Pelegrini: ”Regulação de sinistro:
breves comentários sobre o procedimento e alterações trazidos pelo novo marco
regulatório dos seguros de danos”.
Ainda
no campo da regulação de sinistro, de se notar o trabalho de Ricardo Einsfeld
Villar, “Sinistro e condutas de regulação”, com análise sobre a questão da
fraude; da boa-fé dos interessados no procedimento da regulação; sobre a existência,
ou não, de garantia; do valor do dano sofrido pelo segurado e sobre a
recorrente questão da rapidez na regulação.
Para a
elaboração de grandes obras, caracterizadoras de grandes riscos, necessária a
contratação de seguros que garantam sua execução, construção, fabricação,
entrega fornecimento, assunto a cargo das advogadas Melisa Cunha Pimenta e
Lauana Barros de Almeida, sob a denominação “Seguro Garantia Judicial”.
Na
esfera dos novos riscos, criados pelo desenvolvimento tecno/científico,
ressalta o texto de Letícia Zampieri N. Sampaio: Cyber insurance para a
proteção digital: decisório ou apenas um hype? O texto tem como objetivo,
segundo a própria autora, mostrar o que é o seguro contra o risco cibernético,
“apresentando seus principais aspectos”, e sua importância. Embora pouco
conhecido no Brasil, seu potencial de crescimento é considerável, dado o
aumento dos chamados crimes cibernéticos.
A
advogada Janaina Andreazi apresenta trabalho que intitula “Notas sobre os
seguros paramétricos”, em que discorre sobre o seguro paramétrico, definindo-o
como aquele “que visa garantir interesse legítimo do segurado, baseado em
parâmetros preestabelecidos para a ocorrência de eventos naturais”. Estes podem
decorrer, ou não, da ação do homem, ocasionando verdadeiras catástrofes, a que
o seguro não poderia ficar alheio. O texto discute a candente questão sobre
como calcular o dano causado pela catástrofe e mesmo o conceito de catástrofe.
No que
tange especificamente aos seguros de pessoas, indiscutível importância social é
analisada pelo advogado César Augusto Cassoni.
O
atual Código Civil adotou a dicotomia seguro de dano/seguro de pessoa. Essa
dicotomia é tradicional e está tão arraigada, tanto na doutrina, quando quanto
nas leis, que o jurista italiano, Giuseppe Fanelli afirmou ser a única
distinção capaz de dar uma ordem completa e definitiva a qualquer subespécie
contratual já surgida ou que possa surgir no futuro (cf. Saggi di diritto dele
asscurazioni, Milano, Giuffrè, 1971, p.519).
Modernamente,
porém, há que se admitir a existência de seguros de pessoas, que mesmo sem ter
a função indenizatória própria dos seguros de danos, possuem um viés
indenizatório que os aproximam, colocando em dúvida ou, ao menos relativizando,
o conceito de que seguro de dano e seguro de pessoa constituiriam áreas
estanques, sem comunicação entre si e sem inter-relacionamento.
É o
caso do seguro de vida para garantia de obrigações contratuais, entre os quais
se pode incluir o denominado seguro prestamista. Embora considerado seguro de pessoa, na
essência não deixa de ser próximo ao seguro dano, na medida em que o capital
segurado não poderá ser livremente estipulado e o credor não poderá receber
valor superior ao da obrigação no momento do sinistro e nem contratar quantos
seguros desejar para garantir a mesma obrigação, consoante regra do art. 778
CC. definidora do que seja seguros de dano.
Destarte,
o valor da obrigação garantida é o limite para a determinação do capital
segurado (regra do art. 778) e o valor do saldo devedor da obrigação, no
momento do sinistro, é o limite para o
pagamento do capital (regra do art. 781), ambos dispositivos próprios dos
seguros de danos.
O
seguro sobre a vida de outrem, previsto do art. 790 CC, embora incluído entre
os seguros de pessoas, tem evidente característica de seguro de dano, eis que o
proponente é obrigado a declarar seu interesse pela preservação da vida do
segurado. A doutrina não discrepa que o interesse deve ser econômico.
Presume-se, até prova em contrário, o interesse quando o segurado cônjuge,
ascendente ou descendente do proponente (§ único, art. 790).
Outro
seguro com característica de seguro de danos e o denominado perda de renda, explanado
por Fernanda Dombusch Farias Lobo e Tiago Moraes Gonçalves, com a denominação
de: A cobertura de desemprego involuntário (perda de renda)”. O texto aborda
não só o seguro por desemprego involuntário, como o seguro educacional, ambos
de grande interesse prático.
o art. 101, do
Projeto de Lei, sobre o contrato de seguro, em trâmite pelo Senado Federal, já
aprovado pela Câmara, estatui: “Os seguros contra os riscos de morte e de perda
de integridade física de pessoa que visem a garantir direito patrimonial de
terceiro ou que tenham finalidade indenizatória submetem-se às regras do seguro
de dano”.
Seu parágrafo único, estabelece: “Quando no momento do sinistro o valor da garantia superar o valor do direito patrimonial garantido, o excedente sujeitar-se-á às regras do seguro de vida, e será credor da diferença aquele sobre cuja vida ou integridade física foi contrato o seguro e, no caso de morte, o beneficiário, observando-se as disposições do Título III. O Título III, trata justamente dos seguros sobre a vida e a integridade física.
Nesse passo, resta apontar que o denominado seguro saúde, seguro de pessoa, mas com indiscutível caráter indenizatório, vê esse aspecto indiretamente reconhecido pelo art. 802 CC, ao ser excluído, de forma expressa, do âmbito da seção destinada aos seguros de pessoas, registrando o trabalho da advogada Luciana Paola Mussa: “A falsa coletivização e suas interferência no reajuste por sinistralidade dos planos de saúde”.
Diante de todo o
exposto, insista-se na importância da obra analisada, não só para os
denominados especialistas na matéria, como para os profissionais do direito,
que tenham, por força da atividade, que se defrontar eventualmente com o
complexo contrato de seguro.
AYRTON PIMENTEL
Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP – Universidade de São Paulo, advogado com mais de 50 anos dedicados ao direito do seguro.